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quarta-feira, março 23

Denise Maria de Moraes Santana Fon,paraibana, professora, jornalista e mais uma nova anistiada política


Nem de longe a indenização financeira que o anistiado recebe consegue se equiparar aos danos provocados pela ditadura ao longo de sua vida, entretanto o reconhecimento público da violação de seus direitos talvez seja o que de fato contribua para que os cidadãos percebam o quão terrível foram aqueles anos de perseguição, tortura e mortes. É de suma importância que os jovens conheçam essas histórias de vida, tão sofridas, porém tão cheias de determinação e coragem.

Conforme nos informa Rodrigo Luna do jornal A União "O julgamento, presidido pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foi no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (PUC), um dos espaços que simboliza os movimentos de resistência à opressão durante o regime militar O julgamento, que aconteceu em São Paulo, também deu a garantia de anistia para outros três brasileiros, representantes do setor educacional: Maria Aparecida Antunes Horta, Elza Ferreira Lobo e Emílio Borsari Assirati."

Socializo com vocês o discurso emocionado da Sra. Denise Santana Fon:

Eu tinha 22 anos em 1962 quando , como a ribaçã, tive de deixar minha Paraíba natal em busca da sobrevivência. Não afugentada pela seca, que transforma a lama em pedra e seca o mandacaru mas, marcada para morrer, tentando escapar daquela morte severina, que nos versos de João Cabral do Mello Neto é a morte que se morre de emboscada antes dos vinte. Eu era então uma jovem professorinha que dividia meu tempo e minhas energias entre os alunos do então quarto ano primário da rede pública estadual em uma colônia de pescadores de João Pessoa, a militância no Partido Comunista - para o qual fui recrutada por dois comunistas históricos ,  Henrique Arcoverde e João Santacruz a quem quero aqui prestar minha homenagem – e nas Ligas Camponesas, o movimento criado por Francisco Julião e na Paraíba liderado por João Pedro Teixeira, meu conterrâneo da cidade de Sapé.


Para as pessoas mais jovens – e mais jovens aqui significa com menos de 60 anos, que eram ainda muito meninos 50 anos atrás – pode parecer estranho falar em torturas e assassinatos de militantes de esquerda entre 1961 e 1964, durante os anos do governo João Goulart. Para esses jovens, que não viveram a realidade da luta de classes no Brasil do início dos anos 60, a impressão que fica é que essas práticas só começaram após o 31 de março de 1964.  Mas naqueles anos, se o presidente e seus ministros civis se colocavam claramente do lado dos trabalhadores, nas entranhas do poder, os ministérios militares e os governos estaduais com seus aparelhos de repressão se acumpliciavam ao capital para acobertar os pistoleiros de aluguel ou, frequentemente, assumirem eles mesmos a tarefa de torturar e assassinar trabalhadores e suas lideranças.
Na área do IV Exército, que compreendia entre outros os estados de Pernambuco e Paraíba, esses atentados davam-se principalmente contra os militantes das Ligas Camponesas, que tinham como principal reivindicação o direito de organizar sindicatos de trabalhadores rurais, direito já conquistado pelos trabalhadores urbanos. A tortura, muitas vezes com a amputação de mãos, braços ou pernas, “para servir de exemplo”, era prática comum contra os militantes das Ligas. Para as lideranças que incomodassem os latifundiários, a sentença era a morte.
Quando João Pedro Teixeira foi assassinado por pistoleiros a mando dos coronéis, a notícia se espalhou rápido: eu era a próxima da lista. Escapei por três vezes daquela morte severina, que se morre de emboscada, por acaso durante a campanha a deputado federal do companheiro Severino de Oliveira, irmão de minha camarada e minha amiga querida, Maria Augusta de Oliveira, viúva do líder comunista e desaparecido David Capistrano, com quem tive a honra de militar.

Não escapei, porém, de uma agressão em um restaurante no centro de João Pessoa, quando o atacante anunciou a morte próxima “dessa comunista”. Essa agressão está documentada no meu processo de anistia. E, por determinação do Partido, já que o próprio governador Pedro Gondim reconheceu que não tinha condições de me dar garantias de vida, foi aí que eu vim embora, carregando minha dor e tendo de abandonar meu trabalho como professora na rede estadual de ensino.

Hoje, quase 50 anos depois, eu quero mandar um abraço para minha pequenina Paraíba, em uma homenagem aos companheiros que ficaram no caminho, em especial a João Alfredo Dias, que conheci como Nego Fuba, e Pedro Inácio de Araújo, o Pedro Fazendeiro, presos pelos militares em 1964 e dois dos primeiros desaparecidos políticos deste país. Em seu nome, excelentíssimo senhor ministro da Justiça e senhores membros da Comissão de Anistia, aproveito a oportunidade para pedir a instalação da Comissão da Verdade e o cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina que nos casos de desaparecimento forçado, os Estados têm o dever correlato de investigar e, eventualmente, punir os responsáveis, conforme as obrigações decorrentes da Convenção Americana 142”.
 Fui recebida em São Paulo pela vereadora Matilde Carvalho e pelo casal Edith Negraes e Alcebíades Teixeira de Freitas, que com sua generosa amizade, seu carinho e solidariedade amenizaram a solidão e a fome daqueles tempos de semi-clandestinidade. Juntos estivemos no PCB, no PCdoB, trabalhando na Rádio Praga e, depois, na ALN. Com eles aquela professorinha aprendeu uma nova lição, de coragem, de igualdade, de fraternidade e liberdade. Ensinar essa lição é meu compromisso de vida.  Quero falar pouco sobre os chamados “anos de chumbo” da ditadura porque ainda hoje, 40 anos depois, me dilacera a dor da perda de uma criança devido à tensão daquelas longas noites em que, da janela do apartamento, eu e meu companheiro observávamos o carro com agentes do Dói-Codi do outro lado da rua, piscando o farol quando percebiam que estávamos olhando, como a dizer: nós estamos aqui, à espreita, para levá-los.
Eu não preciso dizer aqui como foram terríveis aqueles anos. Porém, meus amigos, meus companheiros de luta, muitos aqui presentes, sabem que apesar da dor, apesar do medo, cumpri sempre minhas tarefas. Desse período, quero guardar a lembrança de companheiros queridos, mortos e desaparecidos, em especial do pernambucano Luiz José da Cunha, meu comandante Crioulo, que juntos tantas vezes dividimos as saudades do nordeste.  Prefiro falar do reencontro com minhas origens rurais e como professora, quando fui trabalhar com outra liderança dos trabalhadores rurais, com outro João Pedro, o Stédile, do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, liderança histórica do mais importante movimento surgido no campo desde as ligas camponesas. Juntos, entre outras atividades, organizamos o curso de formação de repórteres populares e percorri os acampamentos dos sem-terra por todo o Brasil, ensinando aos trabalhadores como organizar a imprensa popular, para fazer frente aos ataques dos barões da mídia.  Apesar das dificuldades, guardo lembranças felizes de quando estava de novo dando aulas para trabalhadores rurais e seus filhos, nas barracas dos acampamentos à beira das estradas.  
Hoje, 51 anos depois da emoção de ser convidada a entrar no Partido Comunista Brasileiro, é também muito emocionante vir aqui para ter julgado meu processo de anistia. Eu não vou ser hipócrita de dizer que a indenização financeira não interessa, mas quem já passou por este momento sabe que, muito mais compensador é ouvir um representante do Estado brasileiro nos pedir desculpas pelos crimes cometidos.  Até porque não há dinheiro que pague os sonhos perdidos de uma professorinha rebelde que, apesar de algumas recriminações, tirava os filhos dos pescadores da sala de aula  para ensinar-lhes, debaixo de uma gameleira na então distante praia de Tambaú, português, matemática, geografia e os versos do Hino da Independência, que depois, já na ALN, repetiria como um juramento: 
“Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil”. 

Denise Santana Fon

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